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Lídia Jorge sobre Portugal: "Ninguém aqui tem sangue puro"

Antes de voltar ao Brasil para divulgar o livro "Diante da manta do soldado", escritora portuguesa faz discurso contundente contra o racismo em seu país

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Depois da divulgação do excelente “Misericórdia”, a escritora portuguesa Lídia Jorge retorna ao Brasil para lançar mais um grande romance: “Diante da manta do soldado”. Publicado em 1998 em Portugal como“O vale da paixão”, o livro de 200 páginas ganhou no Brasil, na edição recém-lançada pela Autêntica Contemporânea, o título que a autora queria, mas não foi aceito à época.

A residência de Valmares, uma casa antiga “suficientemente distante do Atlântico para não se ouvir a rebentação durante a tempestade, mas não tão longe que o salitre da poeira das ondas não lhe atingisse a fachada”, é o cenário principal do romance – o que desperta a comparação com “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso.


Lídia Jorge vem ao Brasil para cumprir extensa programação, que começa neste sábado em São Paulo. Lídia participa, na Feira do Livro, das mesas “50 Anos de liberdade” (sábado, às 12h, com Fernando Rosas e Mário Lúcio, no auditório Armando Nogueira) e “Diante da lembrança” (domingo, 15, no Palco Petrobras). Depois, a autora segue para Goiânia (segunda, na União Brasileira de Escritores, às 20h e terça na UFG, às 19h), Brasília (quarta-feira, às 10h na UnB e quinta, às 16h, na Livraria Platô) e termina os encontros com leitores brasileiros no Rio de Janeiro (na próxima sexta, às 20h, na Livraria Travessa e segunda-feira, dia 23, às 11h30 na Livraria Machado & Cia – na UFRJ).


Uma das principais vozes da literatura portuguesa contemporânea, Lídia Jorge nasceu em 1946 em Boliqueime, no Algarve, e publicou o primeiro romance, “O dia dos prodígios”, em 1980. Na celebração do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no último dia 10, ela proferiu um discurso contundente de condenação do racismo e da xenofobia:

“Por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma, tem sangue do nativo e do imigrante, do europeu e do africano, do branco e do negro, e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou, filhos do pirata e do que foi roubado, mistura daquele que punia até a morte e do misericordioso que limpava suas feridas. Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos e ainda assim derrubamos uma longuíssima ditadura e fomos capazes de instaurar uma democracia”, lembrou no discurso, diante do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e que viralizou nas redes sociais. Leia, a seguir, a entrevista da autora ao Estado de Minas.



Qual o ponto de partida para “Diante da manta do soldado”?


Esse livro provém de uma vivência ada num espaço rural típico do Sul da Europa, durante o século20, quando a emigração dos europeus para os vários continentes em busca de uma vida melhor se intensificava. Em Portugal, como em Espanha ou a Itália, a estrutura familiar alterava-se, então, profundamente.

“Diante da manta do soldado” resulta da contemplação, a partir de um microcosmos familiar, da batalha interior de personagens em estado de emancipação. É um livro sobre almas reprimidas e almas libertárias, um tema que me interessa porque, por mais ancorado em circunstâncias concretas que esteja sempre fala do que nos define como pessoas e como comunidades. É um tema que não tem antiguidade, é sempre moderno e contemporâneo.

A residência de Valmares é descrita como “concebida de raiz para uma família numerosa”. Podemos considerar que esta casa também é um dos personagens do livro? Foi inspirada em alguma casa que você conheceu ou onde viveu?

Sim, corresponde a uma das casas antigas típicas do Sul de Portugal, casas construídas para albergar famílias numerosas, e que iam crescendo à medida que as crianças nasciam. E, até aos anos 1960, nasciam muitas. O meu avô paterno teve catorze filhos. Hoje em dia, esses imensos casarões estão transformados em hotéis de charme porque se ou para uma economia de turismo e lazer.

É esse momento de mudança e o que daí resulta que constitui a base sociológica deste livro. Mas eu escrevi-o, sobretudo, a pensar no jogo das almas, no coração profundo dos seres humanos, seus desejos e sonhos. O espaço de uma casa é o lugar nuclear da comédia e da tragédia humana. É o palco miniatura do que ocorre no grande palco do mundo.

É possível estabelecer conexões entre “Diante da manta do soldado” e o seu livro anterior lançado no Brasil, “Misericórdia”?


Acho que se podem estabelecer várias conexões. São evocados ambientes e personagens que se aproximam. Maria Ema de “Diante da manta do soldado” tem algum parentesco com Dona Alberti de “Misericórdia”, e há ambientes que têm a mesma localização geográfica. Concordo que os Atlas andam num e noutro, e o papel das várias diásporas também os pode aproximar. Um e outro livro foram escritos com a ambição de erguer páginas literárias sobre a alma humana profunda a partir de figuras simples.

O poeta José Tolentino de Mendonça, quando apresentou “Misericórdia”, disse que eu gostava de escrever sobre os últimos. Comoveu-me muito isso. Corresponde à verdade, pensando sobretudo em alguns dos meus livros. Aliás, livros como “A costa dos murmúrios” ou “Os memoráveis”, que encaram momentos especiais da história recente de Portugal, e que lidam com figuras que a representam, sempre partem da voz dos comuns. É dos lábios dos simples que provém a minha narrativa.

A narrativa é ambientada em um período histórico no qual ainda havia o hábito da correspondência. Como é narrado: “Os Dias não telefonam, apenas mandam cartas. Breves cartas”. O que se perdeu com o desaparecimento das cartas?


O tempo das cartas, hoje, é sobretudo literário pelo charme que evoca e pelo tipo de relação humana que então representava. De facto, com o desaparecimento da correspondência epistolográfica perdeu-se um dos valores fundamentais da escrita pessoal, o treino verbal lento do pensamento afetivo. O valor sentimental do antigo correio, e o que acarretava de toda uma atmosfera estética e simbólica muito própria, transmutou-se para a comunicação digital, e abriu brechas deficitárias.

Essa perda foi substituída pela comunicação de eficácia imediata, empobrecendo vocabulário e sofisticação da linguagem. Mas se o e digital é simplificador em demasia, ao mesmo tempo não enjeita a expressão reflexiva estruturada e metafórica. No meio da balbúrdia comunicativa, e sua temperatura histérica, a verdade é que encontro textos iráveis. Estamos numa fase de transição, e a alma humana, em toda a sua complexidade, sempre procurará a forma de se expressar por inteiro.

Você já leu “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso?


Li faz tempo e foi muito bom ter lido. Associei esse livro de Lúcio Cardoso a “O Som e a fúria”, de (William) Faulkner. As casas e as relações familiares em decadência, quando manejadas pela mão de grandes escritores, são palcos de análise de caracteres que atualizam a problemática das tragédias gregas sobre as relações de poder, mas, na modernidade, isso é realizado a partir dos nossos espaços comuns.

Não precisamos de reis para as ações serem marcantes e simbólicas. Os comuns agem e sentem apenas porque são humanos. “Crônica da casa assassinada”, e todo o cortejo de figuras que nela se oprimem e se libertam, inscreve-se na genealogia dos livros sobre as famílias encerradas numa casa, como uma das narrativas mais inovadoras do seu tempo.

O que foi mais marcante em sua última agem pelo Brasil e o que espera encontrar em nosso país desta vez?


Foi mais marcante ter encontrado nas universidades, e nos palcos de discussão e ambientes artísticos, entendimentos entre as pessoas que não parece reproduzir a clivagem que à distância se sente ente dois Brasis politicamente falando. Ou os meios por onde o a as pessoas que encontro são todas exceção, ou o Brasil prepara-se para entrar numa fase de boa evolução.

Aliás, a prova disso mesmo é a expressão da sua diáspora. Em Portugal, os brasileiros são trabalhadores e oferecem amabilidade, aqui e pela Europa. Não encontro a crispação de há uns tempos. Talvez, também, porque a arte e o desporto que provêm do Brasil são tão marcantes que oferecem uma imagem de positividade que nos aproxima muito.

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